Confesso que nos primeiros tempos da Escola Naval olhava para os cadetes da Reserva Naval com alguma desconfiança. Não por qualquer sentimento discriminatório mas porque tinha a percepção que os oficiais milicianos da Marinha estariam ali por cunhas do poder de então, numa situação de privilégio relativamente à esmagadora maioria dos jovens universitários que, chegada a hora de fazer a tropa, corriam o risco de bater com os costados numa qualquer unidade do Exército perdida nas matas africanas.
Talvez tivesse razão quanto a alguns dos que faziam a tropa no que chamávamos depreciativamente de “reservósia”. Quando olhamos para os nomes dos que passaram pelos sucessivos Cursos de Formação de Oficiais da Reserva Naval, os CFORN, reconhecemos vários nomes sonantes do poder económico e financeiro, muitas vezes conhecidos pelas piores razões.
Mas todos conhecemos o erro de tomar a parte pelo todo. A vida mostrou-me que a percepção inicial estava tão errada como qualquer outra generalização e que pela Reserva Naval passaram muitos homens sérios e competentes, por mérito próprio e não por qualquer privilégio político. Falarei mais adiante dos Fuzileiros, o objecto principal deste arrazoado, mas deixem-me lembrar dois nomes de outras classes, ambos do 21º CFORN de Agosto de 1972, que conheci bem.
O primeiro foi o José Cruz Flipe, um colega engenheiro mecânico que conhecia do tempo em que andei no Técnico. Cruzámo-nos na Escola Naval e quis o destino que o rendesse dois anos depois como segundo de Máquinas da “Pero Escobar“. Ele foi à sua vida civil, eu continuei a carreira naval até que nos voltámos a encontrar em 1980, em circunstâncias imprevisíveis. Eu tinha acabado a pós-graduação no EUA com uma tese em elementos finitos e o Cruz Filipe usava o mesmo método no projecto das carruagens ferroviárias que a Sorefame produzia. Imaginam o tema da conversa no nosso reencontro.
O segundo foi o Raúl Correia Esteves. Fez a RN na classe de Administração Naval, por sinal uma das mais frequentadas pelos tais nomes sonantes. Foi colocado no Estado-Maior da Armada, local que eu não frequentava com assiduidade e por isso não nos encontrámos mais na Marinha. Quando passei à reserva em 2000 e fui trabalhar numa empresa de tecnologias de informação, fomos contratados pela Segurança Social para desenvolver um programa de gestão do imenso parque imobiliário residencial do Estado. E quem é que encontrei como nosso cliente? O Raúl Esteves! Estabelecemos uma excelente relação de trabalho, a minha equipa cumpriu todos os seus requisitos e mais tarde, já como juiz conselheiro do Tribunal de Contas, convidou-nos a apresentar uma proposta para organizar a casa. Aí as condicionantes eram outras e o projecto não foi avante. Mas ficou a grande consideração pelo antigo camarada da Reserva Naval.
No entanto a minha percepção da Reserva Naval já tinha de facto começado a mudar antes, quando malta do meu curso decidiu abandonar as matemáticas e as físicas e alistar-se na classe de Fuzileiros. E falo deles porque, na realidade, foram os únicos do meu curso que combateram na guerra de África. É verdade que não eram esses os planos da Marinha quando abriu o concurso para a Escola Naval em 1970. O número anormal de vagas para as classes de Engenheiros Maquinistas Navais e Administração Naval indicia que pelo menos metade deles estariam destinados aos Fuzileiros mas quis a História e o MFA que o 25 de Abril estragasse os planos.
Voltando à Reserva Naval, é justo lembrar que o único oficial de Marinha que morreu em combate na guerra de África foi um Fuzileiro da Reserva Naval, numa emboscada em Angola. Eu sei que muitos outros oficiais de Marinha, do Quadro Permanente e da Reserva Naval, combateram com honra nos Fuzileiros, mas hoje apetece-me falar apenas dos Fuzileiros da Reserva Naval do meu curso. E fá-lo-ei por ordem de alistamento. De uns recordo-me bem do seu percurso nos Fuzileiros, de outros pouco sabia e de uns poucos nem me lembrava que tinham por lá passado. Perdoem-me portanto se me esquecer de alguma informação relevante.
A primeira leva foi para o 19º CFORN de Setembro de 1971, o mais numeroso de todos os tempos, com 155 cadetes, 28 dos quais Fuzileiros! A guerra apertava…. Vimos sair o Guilherme Neves Veríssimo, o Luís Loureiro Nunes e o Manuel Castro Centeno. O Guilherme foi tão discreto na defesa dos activos da NATO que nem os camaradas “reservosos” do blogue da Reserva Naval sabem por onde andou. Do Luís já aqui referi as vivências em Angola e todos conhecemos o que se seguiu (haverá alguma actividade radical que não tenhas feito?). Do Manel ficou uma imensa saudade e a amarga sensação de que a vida o tratou muito mal. E o Manel não merecia.
A seguir veio o 20º CFORN e foi-se o Abel Ivo de Melo Sousa e o Reinaldo Campos Coelho. O Abel foi o melhor modelo da farda de Fuzileiro na Guiné e o Reinaldo manteve a calma na Metrópole.
Depois chegou o já nosso conhecido 21º CFORN de Agosto de 1972, que levou o José Fernandes Lomba e o Luís Fonseca e Castro. O José andou pela Guiné antes de embarcar noutras navegações e o Luís pela minha terra, Moçambique. Aqui, e peço desculpa a todos os outros camaradas fuzileiros, quero fazer uma declaração: se tivesse que escolher o mais Fuzileiro de todos os Fuzileiros do meu curso e arredores, o Luís Alberto Pessoa da Fonseca e Castro seria a minha escolha.
Por fim, já a ditadura estava quase a cair, o Amílcar Pinto de Oliveira ingressou no 24º CFORN em Fevereiro de 1974. Desculpa lá, Amílcar, mas para ser sincero nem sabia que tinhas sido fuzileiro. Andava já tão distraído com outras fainas que não dei por isso.
Esta foi a minha singela homenagem aos Fuzileiros do meu curso. Deixo-vos algumas fotos para se entreterem a reconhecer os Especiais.
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